terça-feira, 28 de novembro de 2017

Nós, os outros...


domingo, 26 de novembro de 2017

Dias nublados...

O domingo amanheceu nublado. Lentamente o céu começou a chorar uma chuvinha fresca e mansa. Embalando o romantismo, o sonho, o sossego e a paz. Talvez a dor e a tristeza...

A rua molhada, o carro avançando…

Buscara-o na sexta-feira, depois da meia noite, com muita saudade e desejo de passar algum tempo conversando e olhando para ele… Em princípio, um pouco triste, me deu um abraço diferente. Daqueles que nos consolam quando sentimos saudade de algo que não lembramos, mas sabemos que existe em algum lugar do tempo de nossa nossa alma.

O carro avançando…

Disse-me que uma vida se extinguia e isso o entristecia. Ve-lo assim, também me entristeceu. Tomado por um desejo de ajudá-lo, enquanto dirigia o automóvel na noite, falei que a vida tem que ser bem vivida. Moldada com caráter e bons pensamentos. Que não podíamos simplesmente vê-la passando. Que nossas ações eram importantes, pois não viveríamos eternamente, nesse mundo. Interrompendo seu olhar para o nada, me disse:

- Você sabe o que é vida bem vivida? Sem esperar uma resposta continuou:

- É uma vida que tem história para contar…

Sutilmente sorri em meu pensamento e sugeri que ele criasse suas histórias e as levasse para o futuro.Que as semeasse, transformando-as em eternidade. Que as vidas se extinguiam nesse mundo, mas as histórias se eternizavam na memória dos que ficavam.

Choramingou baixinho e, se recompondo, comentou que tinha sono…

A casa, também saudosa, o recebeu com um olhar de organização, sedenta de um pouco de desarrumação. Sentou-se, olhou-me e disse novamente que tinha sono. Que iria se deitar.
Acompanhei-o até o quarto e, uma vez mais, contemplando-o, apaguei a luz. Dormiu rápido. Não sei se ouviu minhas palavras costumeiras nessa hora.

A manhã amanheceu mais um sábado de alegria. Brincadeiras e risos até tarde da noite.

Mas… O domingo amanheceu nublado. Lentamente o céu começou a chorar uma chuvinha fresca e mansa. Embalando o romantismo, o sonho, o sossego e a paz. Talvez a dor e a tristeza... Uma vida se extinguira.







sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Naturalidade...

Naturalidade... Sempre nos referimos a esse termo quando suspeitamos de anormalidade em qualquer setor da vida e buscamos a compreensão ou explicação para aquilo que vislumbramos como algo correto. Quantas vezes dizemos que não achamos algo natural? Mas viver naturalmente nos custa tão caro... Algumas circunstâncias nos confundem e as  dúvidas permanecem sempre as mesmas.

Às vezes recorro aos poetas, escritores e filósofos. Mas suspeito deles também. As palavras escritas são bonitas, pensadas e têm um grande poder de persuasão. Mas são registradas após o sentimento, em um momento de lembranças das experiências vividas in loco ou simplesmente intuídas com certo romantismo. Mesmo contendo muita sabedoria e verdade, elas desconsideram que, ao nascer, nos expomos a toda sorte de possibilidades na vida. Situações em que perder ou ganhar fazem parte de uma engrenagem que pode nos beneficiar da mesma forma. Direta ou indiretamente. Alguns dizem que ganhar é melhor. Concordo e me agrada o pensamento de um sábio positivista brasileiro: “- Eu sempre ganho. Se sou derrotado, eu ganhei a derrota”.

O querer no sentido da posse nos oprime e nos divide, em um mundo onde temos pouca oportunidade para o exercício da liberdade do não ter. Isso seria considerado uma derrota... O dia a dia de nossos valores são vividos à mercê de compromissos e responsabilidades adquiridos por imposição de uma escala comercial, onde, para alcançarmos determinadas coisas, dependemos de outras. Nesse emaranhado, a cada dia mais, escondemos nosso ser.

Temos muita informação, acesso imediato aos acontecimentos do mundo, toda a parafernália considerada necessária para a vida atual, mas a grande soma de possibilidades nunca canaliza o acesso em direção ao conhecimento e crescimento pessoal. Sabemos pouco da cordialidade, da delicadeza... O mundo lá fora avolumou-se e tenta nos consumir. Nossos atos confusos nos incutem certo convencimento da verdade.

Mas nos falta a naturalidade.

Foi deitado, ouvindo os pássaros e o som das águas em uma tarde fresca, tendo ao meu lado um sábio brasileiro, que tentei organizar os desenhos que as nuvens formavam. Antes de nomear cada quadro, por desistência delas, tinha que formular outro raciocínio e me preparar para novas formas. Sentada ao meu lado, a sabedoria sorrindo e contemplando o crepúsculo com serenidade. A alegria simples reinando naquela imensidão. A plenitude invadindo o peito. Entre nuvens, gracejos e compreensão dispersa, lembrei-me de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa:

“Quer pouco: terás tudo.
 Quer nada: serás livre.
 O mesmo amor que tenham
 Por nós, quer-nos, oprime-nos.”*

*Odes de Ricardo Reis - Fernando Pessoa

domingo, 22 de outubro de 2017

Sonhos graciosos - Encontros

O acaso nos leva para onde quer e como quer... De repente nos deparamos com algo inesperado. Detalhes sutis que nos arrastam para outros pensamentos, que nos conduzem às conclusões sobre a vida que, às vezes difícil, nos remete ao sonho como única saída e possibilidade para aceitar a realidade. Nem sempre como gostaríamos. Apenas aquela possível.

Olhava as luzes de um restaurante em frente, imaginando quantos assuntos e pensamentos diferentes, simultaneamente, tentavam, naquele instante,  se fazer entender. As pessoas gesticulando e falando alto. Somente se ouvia um som indefinido de muitas falas. Na rua, carros passando e contribuindo. Reforçando o som do mundo. O som do mundo experimentado nas grandes cidades. Em minha mesa a fala era mansa, em volume adequado às conversas tranquilas, revigorante por sua natureza espontânea e descompromissada. À minha frente duas luzes suaves iluminando a noite que chegava com o frescor de um hálito que contrariava o calor da tarde. Tudo era inusitado. Obra do acaso. Talvez de um acaso forjado, planejado... Como todos os acasos.

Um chopp suave e gelado acalmava o olhar, tornando-o paciente e lânguido como uma aquarela em um livro de Hermann Hesse. Era uma "Caminhada" que se iniciava. A luz do crepúsculo me fascina. A chamada "fresta entre os dois mundos" me perturba, tornando-me mais calmo e observador. À espreita... Consigo, nesses momentos, enxergar o mundo com mais poesia e romantismo.

Enquanto um garçom solícito, daqueles que cultivam o prazer dos olhares felizes de sua clientela ao mirar os "copos cheios", cuidava com esmero de seu ofício, eu, entre uma conversa e outra, já ofuscado pelas duas luzes à minha frente, atendia a algumas pessoas simples, sedentas de algum dinheiro para matar a fome ou para exercitar a arte do "pedir". Alguns com interpretações impecáveis que os tornava dignos de obter uma pequena ajuda. Outros, péssimos atores, interpretavam a sua realidade. Esses me deixavam consternado, tentando sentir em mim a dor que os movia no dia a dia. Mas eu não podia me render ao sentimento de tristeza. A noite era boa. O acaso cuidava de tudo para que parecesse que as peças ocupavam seu lugar exato nesse tabuleiro de xadrez que é a vida.

Para coroar a noite, duas crianças, muito limpas e bonitas, pequenas ainda, se aproximaram pedindo algo para comer. Havia em suas fisionomias uma aura de dignidade pouco vista por mim em toda a minha vida. Não esmolavam. Eram autênticas. Precisavam comer antes de voltarem para suas casas. Depois de um breve bate papo, escolheram uma mesa e aguardaram a bebida e a comida. O garçom, com solicitude, atendeu-as de acordo com todas as regras de etiqueta assimiladas em escola. Para mim, ele era um verdadeiro acadêmico. Daqueles que transcendem a técnica de escola e incorporam o verdadeiro alheamento às características dos clientes, necessário aos que servem por ofício.

Enquanto observava o copo de chopp à minha frente, evitando as duas luzes que ofuscavam minha visão, fui chamado pelos meninos que agradeciam e se despediam. Perguntei-lhes se iam para casa. Já era tarde. Olharam-me com seriedade, respeito e confirmaram. Fiquei ali algum tempo vendo-os enquanto se afastavam. Do outro lado da rua, fortes vozes e pensamentos tentando se fazer entender. Os poucos carros já tornavam a rua mais silenciosa. Somente as luzes à minha frente continuavam acesas e o hálito suave da noite inundando todo o meu ser.

domingo, 1 de outubro de 2017

Ciranda

Pensei nos chamados “Parques de diversão”, de minha infância. Simples, empoeirados… Mas que me deixavam empolgado e feliz com suas “canoinhas”, principalmente. Cordinhas puxadas em sentido contrário e duas crianças se auxiliando com toda a força dos braços, para alçar grandes voos. Havia também um cheiro de pipoca e uma música que minha memória não quis guardar. Esqueceu. 
Veio-me também à memória, a lembrança do palhaço nos circos. Verdadeiro artista, esse sempre foi o meu ídolo. Ficava sempre curioso para conhecer o rosto por trás da pintura e durante muitos anos alimentei em minha alma infantil a possibilidade de ser como ele. Um dia, junto com meu filho, aventurei-me nessa jornada. Rompi as amarras e encarei o que, depois, entendi ser o melhor momento de minha vida. É que meu companheiro de travessuras acreditava piamente na veracidade desse sonhador e me deu o suporte necessário para a conquista máxima da vida. O desprendimento e a liberdade de ser o que se é naturalmente. Com ele vivi, na pele, todos os heróis que conheci em minha infância. Por um breve instante, pelo menos, viajamos juntos e eu me transportei para aqueles mundos, até então esquecidos em minha memória.  
Agora, enquanto esses pensamentos passeavam pela minha mente eu via pessoas felizes e sorridentes, conversando, comendo e bebendo. Enquanto eu mirava uma belíssima “Floresta Negra”, à minha frente, com breves olhadelas para trás, acompanhava um lindo por do sol, provando, para mim, ser ele o mais belo horizonte. Suas cores estavam vivas e saltitantes, refletidas no correr das crianças. Sua vivacidade emanava dos gritos dessas crianças, me lembrando a música dos parques, das missas e… Das Cirandas na escola. Mas o tempo não para. Agora eu somente podia olhar. 
Para trás, para o presente e tentar vislumbrar o futuro que não existe.
Enquanto sentia o prazer de uma cerveja invadindo meu olhar, me tornando leve o coração e mansa a voz, me levando ao breve instante em que entendemos o sentido de nossa vida, eu revivia, animado, histórias da infância com outros que, em volta da mesa, completavam o meu pensamento. Deixavam que, com minhas histórias, eu me tornasse um grande pistoleiro ou mocinho no cinema, com um grande chapéu e dois coldres abaixo da cintura. Preparado para o duelo triunfal “ao por do sol”. 
Lembrei-me de um episódio em que, emboscado por meus inimigos, ao receber um tiro de espoleta caí, com uma queda cinematográfica, em um grande reservatório de água que havia em minha casa. Fui salvo por duas mãos que me levantaram pelas orelhas, manchando assim, minha reputação de grande herói do oeste. Algo esquecido um dia após essa tragédia.
Como em tudo há urgência, saí do hipnotismo para o parabéns. Afinal as crianças são ansiosas nas festas e temos que entende-las. Elas não precisam do sonho. Suas vidas são “o sonho” e, algumas vezes, em breves lampejos, conseguimos sonhar junto com elas. Cantamos, abraçamos e pude ver a “Floresta Negra” sendo desmatada naquela mesa alegre, juntamente com brigadeiros e outras guloseimas. 
Naquela altura, eu já não entendia o sentido da vida. Aquele instante já passara e cedera seu lugar à sonolência. Boa, por sinal, porque me instigava a lutar contra ela. Me sentindo, em pensamento, um pouco ridículo, percebi que, para ficar bem, eu teria que me envolver em novas aventuras, salvar os fracos e oprimidos e tentar resgatar o palhaço, o menino simples e sonhador que brincava nas canoinhas dos parques. Toma-lo das mãos do mundo que insistia em provar que a razão se sobrepõe à imaginação. 
Nessa Ciranda, lembrei-me da frase, acho que de Dostóievski: “Há momentos, e você chega a esses momentos, em que, de repente, o tempo para e acontece a eternidade.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Respostas...

Assistindo a um filme*, resolvi escrever sobre uma frase intrigante, do protagonista: “Só há quatro perguntas de valor na vida”.

O que é sagrado?

Embora vivamos presos a conceitos e preceitos, principalmente religiosos, transmitidos por nossos antepassados, quando nos abrimos para a vida aceitando os desafios com um olhar imparcial e desprovido de preconceito, nos deparamos com nosso Eu verdadeiro. Onde reside a verdade, segundo Santo Agostinho. Não a que mostramos no dia a dia para aqueles que convivem conosco, mas aquela que trazemos guardada no íntimo, onde convivem certezas e inseguranças. Onde nem sempre somos como aparentamos ou desejamos aparentar. Nessa investida, pouco a pouco, abandonamos o nosso eu periférico, aquele que é conhecido e esperado por todos. Esse sentimento puro nos conduz ao respeito profundo e natural por todos os seres e nos enleva e eleva  ao estado de consciência alterada. Tornando nossa jornada nesse mundo, um caminho de aprendizado. Não sabemos para onde vamos e desconhecemos o princípio e o fim de tudo. Mas sabemos que vale a pena, quando seguimos rumo à purificação, guiados pelo Eu verdadeiro. Onde residem nossas qualidades superiores: a tolerância, paciência e...

Do que é feito o espírito?

Tudo que não conhecemos, embora nossa intuição reconheça, nos distancia da explicação racional. Mas como não crer que há algo que nos move, nos inspira e nos faz ter força, crer em sonhos e persistir em buscas, inicialmente incríveis? Possuímos o dom de consagrar tudo aquilo que rega nossa alma com positividade e alimentamos nosso espírito com o fruto desse dom. Essa, a essência que constitui toda nossa vontade e crença em perseguir e tentar realizar nossos propósitos. Partindo daquilo que concebemos como bom, mesmo que, às vezes, esse sentimento não corresponda  ao consenso comum. Possuímos o livre arbítrio da forma de alimentar nosso espírito. Criamos, com nossas atitudes, um alimento para a alma, que pode ser bom ou não, mesmo atendendo aos nossos desejos e crenças. Esse entendimento nos levará à necessidade de evolução que se consolida na compreensão incognoscível de tudo que nos rodeia. Mesmo inacessível ao nosso entendimento racional, isso nos fortalece e nos leva à percepção de um todo. Morada da paz, leveza e do...

Pelo que vale a pena viver?

Conhecer o mundo com suas riquezas e diversidades já seria um motivo para considerarmos-nos privilegiados. Mas a natureza, em sua sabedoria, quis nos dar mais, mesmo correndo o risco de que nós nos perdêssemos em meio a tantas possibilidades e nos esquecêssemos que fazemos parte desse planeta admirável. Onde, com harmonia e boa fé, poderemos solucionar todos os problemas que nós mesmos criamos. Para que compreendêssemos o sentido de tudo em nossas vidas, fomos conduzidos à responsabilidade. Com o ser, com o ter e com a base de tudo: a convivência em sociedade. Tudo isso nos envolvendo e nos levando à busca de realização pessoal em todos os sentidos. Moldando o nosso caráter com base nas experiências prévias da natureza humana, história e evolução do ser, e no que recebemos ou deixamos de receber de nossos pais, avós... Esse conjunto de experiências culmina, ou deveria culminar, na gratidão, carinho com tudo que nos rodeia, mesmo em tempos de sombras, clareando os caminhos da alma, do coração e nos levando ao...

E pelo que vale a pena morrer?

O que seria nossa vida, se não houvesse a morte, o desconhecido? Momento de unificação e igualdade. Todos os seres nascem e morrem. Independente de saúde, paz, condição social... Todos os aparatos vão por terra no último suspiro. Restando somente o que somos ou o que fomos. O balanço final de nossos atos nesse mundo. A constatação de que tudo que nos ensinou algo, moldando nosso caráter e visão humanitária de viajantes de um mesmo vagão, valeu a pena. A configuração da verdade de cada um. Universo: um em diversos. Seguimos em paz quando vivemos  e cuidamos do...

A resposta para todas essas perguntas é a mesma... Segundo o protagonista do filme: amor. Esse sentimento tão banalizado e confundido com religião e não com religiosidade. Com o profano e não com o espiritual. Só existe uma resposta para qualquer pergunta. As mães sempre souberam disso. Os pais sabem disso. Os filhos, saberão disso. Curiosamente, todas as respostas poderiam ser dadas para a última pergunta. O final dos trilhos, a curva da estrada.

* Don Juan DeMarco (1994) - dirigido por Jeremy Leven






sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Quantas vidas...

Após assistir “Balzac e a costureirinha chinesa”, pesquisando sobre o filme me deparei com essa frase atribuída a Honoré de Balzac: “É tão absurdo dizer que um homem não pode amar a mesma mulher toda a vida, quanto dizer que um violinista precisa de diversos violinos para tocar a mesma música.” 
Não sei o contexto em que foi escrita, mas, machismo à parte (ambos podem amar, ou tentar, por toda a vida), gostei da frase. 
Pensei nas várias formas de amor e na possibilidade de uma vida bem vivida, seguindo fielmente nossos ideais amparados pelo respeito a todos que encontramos, sem a necessidade de muitos argumentos corroborando nossas atitudes. Alguns dando muitas voltas e outros caminhando em linha reta. Porém, todos com o mesmo objetivo… 
Nesse eu quero crer: viver em paz experimentando cada momento, saboreando as coisas boas e aceitando as dificuldades com a cabeça erguida. Com honestidade, resignação e determinação. Respeito e espontaneidade exercitados no dia a dia, nos libertando de armaduras que nos protegem mas também tolhem nossos movimentos. 
É possível crer em algo que nos faz bem, por toda a vida. Não precisamos de várias vidas para crer no amor.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Um dia de canção

Parte A

Chegar à sede da UBC no Rio de Janeiro nessa última sexta-feira foi interessante. Triste, talvez. Logo na recepção, pude ver um banner que anunciava a morte de Fernando Brant. A recepcionista, Soninha, com olhos tristes me saudou com um beijo suave e um abraço indagador. Daqueles que nos questionam a falta do protagonista. Eu, coadjuvante, diante de um semblante de choro, decidi que iria subir para ver algumas pessoas. No elevador, era como se desvendasse diante de mim uma nova casa em um silêncio total que dominava minha mente, entremeada por pequenos cumprimentos aos funcionários que cruzavam comigo que, com olhares suaves, assentindo com a cabeça, confirmavam entender minha solidão. Foi no oitavo andar, após o sorriso comedido e tímido das meninas que me receberam, que me dei conta do vazio que vivemos quando pessoas que amamos e respeitamos, se ausentam de nossas vidas. Marisa Gandelman com os olhos marejados, veio me receber e num abraço longo dissemos tudo que nunca poderíamos transmitir por meio de palavras, sobre o ocorrido. Começamos então uma conversa informal sobre música e abordamos alguns assuntos de trabalho... Mas o tom da fala era cuidadoso. Está faltando o protagonista...
Com a chegada do amigo Manno Góes, após longo abraço, voltamos às lembranças entremeadas pela urgência do trabalho e continuação de um sonho que foi sonhado, plantado e cultivado há 73 anos: a luta em favor dos direitos de autor. A União Brasileira de Compositores. Nosso próximo compromisso seria a Missa para o Fernando, na Igreja de Santa Rita, próxima à UBC. Lá fora o dia nublado chorava uma chuvinha fina e nostálgica...

Parte B

Após a missa, amigos e artistas abraçavam os familiares. Aliás, todos se abraçavam. Ao som de "Canção da América", seguimos para um almoço com os familiares e pessoas bem próximas do Fernando, em um restaurante de que ele gostava muito, situado nas imediações. Já na rua, ao lado de Leise, esposa e companheira de longos anos de Fernando, experimentei algo que já suspeitava há muito tempo.

Vivemos amparados por estruturas que nos tornam seguros ou inseguros, melhores ou piores como pessoas.

A família Brant, ali representada por Ana Luísa, Bebel e Diógenes, todos com personalidade muito definida, me mostravam claramente o tom do dia a dia regido com maestria pela mãe, mulher de fibra e personalidade forte. Uma verdadeira amiga. Eu que levo a vida envolvida por um romantismo constante, pensando em Fernando Brant com seu estilo otimista, amigo, franco e ao mesmo tempo gentil, não resisti ao desejo de participar desse momento de tanta lucidez, mesmo que envolvido por uma aura de saudosismo e tristeza que povoavam nossos assuntos. Bebi e degustei cada lembrança, cada história contada pela Leise... Algumas me envolvendo. E os laços, em minha mente, crescendo. Me levando, cada vez para mais perto deles.
Aqui fora o dia nublado chorava uma chuvinha fina e nostálgica...

Parte  A1

Foi no restaurante que aconteceu a catarse da amizade espalhada como um vírus por Fernando e sua família. O respeito, carinho e admiração exalavam ao meu lado com Aloysio Reis contando histórias e experiências com o Fernando, enquanto Manno Góes fazia um lindo contraponto melódico em alusão à sua experiência com o grande poeta. Sydney Sanches e sua esposa Leila Pose Sanches, em outra ponta, conduziam nossos assuntos com bom humor e leveza. Daquelas que somente os verdadeiramente amigos são capazes. Eu, estranhamente feliz por aquele momento, trocava pequenas frases e fazia coro com Marisa, Leise, Diógenes e sua namorada Mariana. Bebel e Ana Luisa permaneciam fiéis à harmonia. Essa música embalou toda a tarde e teve a pretensão de se tornar um grande tema com variações. Nessa hora, quem regia era Fernando Brant.
Mas o tempo não para. Os relógios, os aeroportos, são rigorosos...

Lá fora o dia nublado chorava uma chuva forte e saudosa, escondendo o crepúsculo que não suportou sua dor... Parecia que nesse dia não haveria a "Fresta entre os dois mundos". Fernando se fora.

CODA

Já na rua, em meio a muita chuva, movimento de automóveis e muitos transeuntes, tentamos, exaustivamente, conseguir um táxi que nos conduzisse ao aeroporto. Aos meus olhos e para o meu coração, o Rio de Janeiro estava banhado em lágrimas, refletindo meu sentimento. As poças d'água na rua me diziam para seguir com cuidado pela vida. Sabendo onde pisar... Cuidando dos amigos e pessoas à minha volta. Cuidando do sonho. Com muito custo, cheguei ao aeroporto. Depois de muitas provações, entre elas voos cancelados e mudança para outro aeroporto, já na madrugada de sábado, cheguei à minha casa. Cansado e pensativo, depois de um banho e algumas cervejas, recapitulei o dia e, já deitado, pensei como a vida é boa e segue uma lógica própria. Tentei ordenar meus pensamentos, mas a vida não se desenvolve baseada em nossos preceitos. Enquanto pensava uma forma de organizar o mundo, cerraram-se as cortinas dos meus olhos desencadeando uma longa Fermata de sonhos...
Lá fora, um dia renascia me convidando para seguir em frente, dando assim o sentido de eternidade: continuar tudo que nos foi dado gratuitamente pela vida, pelos amigos... Viva Fernando Brant!!


quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Arte e vida em sociedade

Noite sem sono. Na madrugada os problemas ganham outra dimensão. Tornam-se maiores. Enquanto o pensamento briga com o corpo inquieto, penso em nossa condição atual. Na arte, na vida... Como em minha mente eu posso questionar tudo sem ser censurado, imagino o quanto nosso país é inculto. Na acepção dessa palavra, mal cuidado.

Nos últimos meses, quanta vergonha tenho sentido em reuniões com autores estrangeiros, quando abordam o caráter e a honestidade dos políticos brasileiros. Eu, sempre argumentando e questionando todos pela ótica  da legitimidade da correção pessoal. Da dignidade individual. Da índole.

O que mais me atemoriza em todos esses aspectos medonhos que vivemos, é a hipocrisia. Também e principalmente, da sociedade. Das organizações e grupos que promovem o conservadorismo e, ao mesmo tempo, não se assustam com a massificação que assola o país por meio do condicionamento de ideias, tendências e exposição de uma pseudo realidade.
Onde o ter, em todos os níveis, se impõe ao saber ou à busca de conhecimento e respeito à diversidade. Ter razão, ter prestígio, se impor, mesmo que seja pela falsa sabedoria e pelo prazer da discussão não levada à prática e busca de melhorias para a vida...

Palavras que escorrem como vômitos incontidos. Nos levando, cada vez mais, à solidão.
Nos escondendo atrás de  falsos ídolos, conceitos, moralismos e deixando a vida lá de fora nos engolir com suas promessas que escondem uma gana de exploração da condição humana. Falsas realizações. Quando o nosso protagonismo ultrapassa o sentido da vida.

E o sono não vem. Claro. Em meio a esse caos do pensamento...

Penso que a arte sempre foi a interrogação dos tempos. Documentou a história da humanidade por meio da pintura, da música, arquitetura, dança, literatura, poesia... De todas as suas vertentes. Quando o criador, percebendo o mundo, retrata e extravasa sua inquietude por meio de sua criação.

Um breve cochilo no tempo...

Desperto novamente e, inquieto, me lembro do episódio de uma exposição de arte interrompida recentemente. Vencido pela falta de sono pesquiso um pouco sobre o tema e encontro a nota de cancelamento, emitida pelo órgão responsável e divulgada pela imprensa. Em determinado trecho dizem: “Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.”
Em todas as manifestações contrárias às obras expostas, percebi a arte como instrumento de reflexão positiva sobre os seres que habitam nossa contemporaneidade. Nossa sociedade. O medo de símbolos em contraste com a hipocrisia... Nosso reflexo no espelho. Me vem a dúvida: será que entendi tudo errado desde o começo de meus estudos de música, cinema e arte em geral? Lembrei-me de um disco antigo que gravei, onde escrevi:

“Quando penso na forma como me envolvi com a música, me volta à memória a minha infância, quando, aos sete anos de idade, adormeci para a realidade do dia a dia e despertei em um sonho de magia e de sons. De lá para cá, entre acordos e desacordos, às vezes volto a essa “realidade”. Como não me encontro, novamente retorno ao sono profundo e encantador que é a música.”

Perdi a hora...

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Sobre amigos e quintais

O limite territorial era pequeno. Embora fosse de um quarteirão a outro, podia-se avistar com facilidade o eventual trânsito de automóveis na rua de baixo, quando se escalava um pequeno muro que separava o jardim, da chamada rua do meio.

Existiam apenas três ruas, conhecidas como a de cima, a do meio e a de baixo. Meu universo se restringia àquele quintal oculto por uma casa velha situada na rua do meio, que tinha à sua direita lindas flores que cresciam a esmo num jardim forjado pelas mãos da natureza sem nenhuma interferência humana. Ali, pelas mãos do criador, segundo critérios naturais, nasciam e morriam flores do campo, marias-sem-vergonha, rosas, margaridas, antúrios e um desavisado canteiro de cebolinha verde que brotava e, num curto espaço de tempo, sucumbia à força de imensas samambaias e ervas daninhas.

Naquele tempo, eu, aventureiro, desbravava uma grande floresta com seus perigos, levando no peito aberto um sentimento talvez experimentado apenas pelos primeiros bandeirantes que cruzaram nossas terras primitivas. Às vezes improvisava abrigos cobertos com folhas de bananeira e esconderijos sob grandes pés de mamona protegidos por imensas mangueiras. Ali eu tinha, além do abrigo, a munição necessária para combater possíveis invasores, fornecida pela mamoneira.  Tudo ali, naquele território que ia de uma rua à outra.

Quando ao final da tarde, cansado, eu voltava para o aconchego de uma casa tranqüila, aquecida e com seu piso espelhado, passava ao lado de uma porta que levava aos porões escuros e misteriosos que tantas vezes me assombraram. Entre uma breve olhadela e um arrepio na espinha, correndo escada acima, alcançava a entrada da cozinha, de onde vinha um cheiro forte e agradável de tempero, exalado pela carne guardada na gordura. Hipnotizado, corria para a mesa e, a contragosto, atendia à exigência de minha mãe, dirigindo-me à pia para lavar as mãos. Num piscar de olhos, já a postos, deliciava-me com aquela carne gostosa que cuidadosamente eu desfiava. Nestes momentos era tomado por um estado de amnésia, que me fazia esquecer do provedor deste alimento, com o qual eu tanto conversara e por quem lamentara a perda.

À noite, após o banho batizado por minha mãe como “banho de gato”, sonolento, ouvia as histórias lidas por meu pai, das quais nunca conheci o final. Meus olhos pesados se impunham como carga insuportável para minhas pálpebras que, mesmo relutando, cediam entregues à exaustão. Quando finalmente conseguia reerguê-las, já era dia. Lá fora um mundo novo, festejado por pardais e sanhaços me convidava para grandes aventuras na selva. Com a promessa de lutar pelo bem da humanidade tal qual um paladino, e fazer-me merecedor do amor daquela que habitava meus sonhos, com apenas um salto, descia a pequena escada da cozinha e, despreocupadamente, olhava para a entrada do porão. Com toda a valentia de super-herói, com um pontapé, escancarava aquela velha porta e, sorrindo, partia para mais uma aventura.

À minha espera já estavam meus amigos de brincadeiras. Naquele tempo todos nós tínhamos apelido. Havia o Bob, a Pink, o Zulu e a Gabriela, a única a quem chamávamos pelo nome. Não conseguíamos encontrar um apelido que se adequasse à sua delicadeza e brandura. Eu era, às vezes, o Macarrão, por ser muito magro e outras, o Coalhada, por ter a pele muito clara. Mas somente permitia ser tratado assim naquele pequeno círculo, onde me sentia à vontade com meus amigos.

Bob era tranqüilo e solidário. Porém, após planejarmos nossas brincadeiras, participava ativamente. Parecia incansável. Às vezes, mesmo depois de já termos dado cabo dos bandidos, continuava a correr e nos atacar, querendo mais luta. Várias vezes fugi dele, zangado por sua insistência em continuar brincando. Jurava não aceitá-lo mais em nossa turma. Mas quando, no dia seguinte, ele chegava cabisbaixo como quem implora pelo perdão, eu o readmitia. Não sem antes impor condições.

Pink era a menor de todos. Tinha lindos olhos azuis e um andar suave e cambaleante. Parecia frágil, o que fazia com que tivéssemos muito cuidado com ela nas brincadeiras. Não participava das lutas e guerras de mamona. Era protegida por todos, o que a deixava em posição privilegiada.

Zulu era sempre o bandido. Chegara não sei de onde e preenchera uma lacuna importante em nossas brincadeiras. Pequeno e gordo, tinha um andar engraçado. Seus movimentos lentos facilitavam nossas investidas e vitórias. Apesar de ser sempre o perdedor, nunca reclamava ou recusava participar de uma aventura. Às vezes nos jogávamos todos sobre ele numa grande algazarra. Ele, quase sem ar, se reerguia e lançava-se sobre nós. Tornou-se importante sua presença em nosso dia-a-dia.

Gabriela era a mais esperada todos os dias. Sempre muito limpa, com um olhar suave e uma quietude que nos chamava a atenção. Às vezes trazia um laço vermelho  do lado direito da cabeça e quando nos observava, acariciava levemente o queixo. Juntamente com Pink, participava quase sempre como espectadora.

Lembro-me que certa vez planejei invadir uma tribo e tomar posse de seus pertences e território. Bem cedo, convocando a todos, expliquei qual seria o plano. Pink, por ser a menor e mais lenta, atrairia toda a tribo para uma trilha preparada por nós, enquanto Bob e Zulu os despistariam. Gabriela seria poupada. Poderia assistir a tudo para depois nos contar com detalhes toda a batalha. De acordo com o combinado, o inimigo seria levado para as proximidades de nosso esconderijo. Zulu deixar-se-ia capturar e Bob fugiria como se temesse ser pego. Na fuga ele daria uma volta em torno de nossos adversários, surpreendendo-os pela retaguarda. Eu surgiria pela frente, e os atingiria com uma grande saraivada de mamonas.

Tudo planejado, repassamos o plano e nos preparamos para o ataque. Enquanto enchia os bolsos e mãos de mamonas, ouvia gritos e barulho de correria pelo mato. Já preparado, atrás de uma moita num ponto estrategicamente escolhido, aguardava o momento para atirar-me contra todos e, num golpe de misericórdia, vencer e ser aclamado herói e chefe de uma nova tribo.
Em instantes vi Zulu ser agarrado pelos inimigos enquanto Bob corria velozmente em ziguezague, evitando ser alcançado. Já rendido, Zulu tentava em vão se livrar dos golpes desferidos por peles vermelhas furiosos. O número de atacantes era bem maior que o esperado. Era uma tribo de guerreiros maiores. Lançaram-se sobre mim e com pontapés me levaram ao chão. Bob tentou ainda me salvar, mas foi atingido por um soco nas costas. Dominado por um grande ódio, lancei-me sobre o maior deles, que me pareceu ser o chefe. Reagindo e puxando-me pelos cabelos, ele me empurrou sobre algumas toras de madeira apodrecida. Observei que minhas canelas sangravam. Apanhei algumas pedras e atirei-me sobre ele com raiva.

Nesse instante senti minhas orelhas ardendo e assustado voltei-me para trás. Meu pai, aos gritos, me arrastava fazendo-me erguer os pés para acompanhá-lo. Enquanto era conduzido por ele ouvindo fortes reprimendas pude ainda, humilhado, olhar para os inimigos que comemoravam sua vitória e me ironizavam. Diante de tamanho exército meus amigos nada puderam fazer. Lançaram-se em alta velocidade para o interior da selva, cuidando de não deixarem pistas.

Triste, derrotado e com ódio de meu pai, fui ainda submetido a um sermão naquela noite. Mais calmo, ele disse que já era tempo de eu crescer. Que deveria cuidar mais dos estudos, pois não era mais uma criança. Olhando-o fixamente, pensava nos meus amigos que lutaram comigo até o fim. Tentaria encontrá-los no dia seguinte. Enquanto imaginava como seria  minha vingança, fui subitamente interrompido por sua voz forte e elevada. Após uma breve pausa, olhou-me e lentamente falou que a partir do dia seguinte eu teria que trabalhar. Que só poderia me ausentar de casa para ir à escola. Que não permitiria mais minhas idas ao quintal para brincar. Que eu só criava confusões.

Meu mundo desmoronou. Naquela noite tive pesadelos e sonhei que era feito prisioneiro por um grande exército que planejava queimar-me vivo. No dia seguinte acordei com febre. Minha mãe, após me examinar, disse que seria melhor eu continuar na cama. Trouxe-me chá e cuidou para que eu não colocasse os pés no chão. Sentia dores no corpo todo e me lembrava do dia anterior como o pior dia de minha vida. À noite meu pai apareceu e disse que nada mudara. Tão logo eu estivesse melhor iria trabalhar ao seu lado. Que já era adulto. Não podia passar o dia todo envolvido em brincadeiras, procurando encrencas.
Minha cabeça estava confusa. Queria naquele momento estar entre meus amigos explorando aquela selva cheia de segredos onde eu podia livremente criar minha história, construir minhas cavernas e esconderijos.

No dia seguinte, muito cedo, como não havia melhorado, levantei-me e, após tomar o café da manhã, com todo cuidado e silêncio do mundo, pé-ante-pé, tentei descer as escadas da cozinha. Surpreendido por um grito de meu pai, retornei à cama. Dormi o dia todo.
Quando o sol já se tornara pálido, percebendo um grande silêncio em minha casa, levantei-me. Com toda a cautela do mundo abri a porta da cozinha e, quase sem respirar, desci os degraus que me levariam ao quintal já escuro àquela hora. Ao passar pela porta do porão senti-me atraído por alguma coisa que insistentemente chamava-me a atenção. Sentia medo e tentava, em vão, recuar. Fui tomado por uma coragem súbita e, respirando fundo, com o ombro abri violentamente aquele túnel que me levava à escuridão. Pude ver uma revoada de morcegos que se preparavam para se aventurarem noite adentro. Aos poucos meus olhos foram se acostumando à escuridão. Vaguei por alguns instantes sem destino sentindo todo meu corpo tremer. Aos poucos percebi uma luz que brilhava longe e que me fazia sentir alguma segurança.

Caminhei em sua direção por longas noites. Talvez meses, talvez anos. Quando, depois de muito tempo, consegui me aproximar daquele brilho, percebi que se tratava de uma pequena janela. Como não podia transpô-la, sentei-me e comecei a admirar todas as maravilhas do outro lado.
Vi uma rua sendo asfaltada e tendo seu movimento alterado por um grande número de automóveis. À medida que os anos passavam pude perceber um lindo jardim sendo destruído e em seu lugar um grande prédio ser levantado.  Já não havia tribos que me ameaçassem. Contidos, todos os inimigos me evitavam. Temiam lutar comigo ou não me percebiam através daquela pequena janela. Também não havia mais super heróis. Tudo estava mudado. Sabendo que naquele lugar eu estaria seguro para sempre, permaneci observando o mundo como se olhasse a vida através de uma vidraça. Nada mais me atingia, nada me fazia sofrer. Às vezes somente uma saudade me afligia. Pensava em meus amigos. Onde andariam?

Certa vez, ouvindo os transeuntes que passavam por minha janela, soube que Zulu, preso em um pequeno canil, ficara tão furioso que morrera tentando arrebentar uma fortaleza cercada por telas de arame.
Pink, após aquela batalha, experimentara a vida na rua lutando pelo alimento de cada dia. Tivera alguns filhotes e num dia como qualquer outro, fora atropelada por um automóvel e morrera.

Bob, capturado pelos inimigos, fora levado a uma fazenda. Imaginando que a brincadeira continuava, morreu ao perseguir uma boiada no pasto. Atingido por um coice, não resistiu.

Gabriela tivera uma ninhada de lindos coelhinhos. Todos delicados, brancos e suaves como a mãe.

Eu, enquanto pensava em meus amigos, olhando da escuridão em que me encontrava, para a luz que eu percebia lá fora, elaborava um plano que me libertasse daquele presídio e me conduzisse àquele quintal onde cresciam mamoneiras, mangueiras e outras plantas. Ali, embaladas pelo canto de pardais, sanhaços, gaturamos e um sem número de outros pássaros, todos cumpriam harmoniosamente o ofício e arte de viver.  Às vezes pensava em retornar pelo túnel escuro e, numa linda manhã de primavera, abrir aquela porta que me conduzira à solidão. Mas tinha medo. Lá fora já não se falava em aventuras. As pessoas já não tratavam como semelhantes a natureza e os animais. Iludidos, todos se portavam como superiores.

Dedico esta pequena história ao Otto, que me mostrou como viver intensamente com alegria até o momento da morte.

sábado, 22 de abril de 2017

A solidão da existência em Hermann Hesse

A evolução pessoal e espiritual por meio da experiência estética vivenciada  na arte é constante na obra de Hermann Hesse, escritor alemão, nascido em Calw e naturalizado suíço.
Desde suas primeiras obras até a maturidade plena, quando produziu seus grandes romances, seus personagens, quase sempre espelhos de sua realidade, encontram na música e na pintura, principalmente, o impulso criador como mola propulsora para o enfrentamento da realidade e contingências do dia a dia. Em um paralelo entre a vida vivida intensamente, em meio às suas complexidades, a evolução rumo ao conhecimento por meio da experiência diária e o embate com a fragilidade do ser, confrontando com as regras de comportamento e luta pela sobrevivência, vemos o nascer de um outro componente: o homem enquanto individuo pensante, com suas necessidades, qualidades e desejos de auto afirmação, na solidão de sua existência.

Hesse, como Nietzche, considerava a música uma arte feminina, que se organiza por meio de harmonia e sons puros, alheia à representação de objetos em contraponto com a pintura, uma arte masculina, de representação e realismo.

Gertrud, romance de 1910, considerado musical, aborda com lirismo e suavidade a possibilidade da transformação, pela criação, das diferenças e deformidades humanas, em arte sublime. Toda a transparência melancólica de seu personagem, frente ao desgaste imposto por sua condição física, nos conduz ao vislumbre da possibilidade de trilhar um caminho iluminado pela arte, rumo à redenção da vida. Gertrud, mesmo não sendo a personagem central, traduz o ideal da estética artística, num misto de beleza e desejo, não apenas físico, mas também de impulso à criação.
Com inúmeras interpretações possíveis, o romance contém, em sua temática, como em outros livros do autor, um diálogo e busca de convivência entre o intelecto e o empirismo, o sonho e a realidade, o sagrado e o profano.
Hermann Hesse compõe e constrói uma atmosfera melancólica enriquecida pelos questionamentos do confronto entre a arte e a vida, que antecipariam os anos difíceis que impulsionariam a destruição,  presentes na origem do terceiro Reich.

Rosshald (1914), nome do romance e da propriedade onde vive o pintor Johann Veraguth, mostra o processo de redescobrimento da personalidade e a busca de identidade do protagonista. O personagem reúne em si as várias facetas do sentimento humano: um casamento em crise, o amor incondicional por um filho e os conflitos com um outro filho mais velho. Momentos diferentes da vida, embalados pelo mesmo sentimento, em suas variadas formas objetivas e subjetivas. Em meio a todos esses sentimentos, a pintura serve como um suporte para a aceitação e continuação da vida, onde o personagem consegue mergulhar para transpor o que, no dia a dia, surge como intransponível. Rosshalde torna-se uma prisão onde Johann Veraguth vive uma vida sem sentido. É por meio da visita de um amigo, o personagem Otto Burkhardt que nos deparamos novamente, com o questionamento da vida, quando o pintor faz uma análise de sua história pregressa em busca de sua identidade, tendo a arte como clarificadora de tudo o que ele poderia ser. O auto conhecimento o levará a soltar as amarras que o prendem a Rosshalde, elipse dos conceitos impostos pelo sistema, com suas travas criadas no ambiente de formação. Filosofia, intelecto e criação amparando o pensamento que nos conduz à dificuldade de viver um dia por vez, frente às intempéries e desilusões mas que, no enlaçar das pontas, nos levarão às realizações plenas, com o domínio de nossas funções no meio em que vivemos. Hermann Hesse nos possibilita infiltrar na forma de olhar do artista, nos conduzindo, assim, ao encontro de nós mesmos, quando, paralelamente à leitura, repassamos nossos valores, sonhos e desejos frustrados, devido à inércia do comodismo, adquirida pelo exercício de uma pseudo-segurança que nos conduz aos valores e sistema de regras em que vivemos.

Escrito durante uma crise existencial, como as que precederam suas importantes obras, em 1927 é lançado aquele que seria considerado um de seus mais importantes romances:  “O Lobo da estepe”.
Hermann Hesse confronta nesse romance a solidão e o desregramento humano com seu lado essencialmente puro. Harry Haller, personagem central que se autodenomina “Lobo das estepes” curiosamente tem em seu nome as iniciais do autor, fato que nos leva a crer na, sempre presente,  duplicidade de seus personagens, onde se confundem a ficção e a realidade. Harry Haller é um homem hipocondríaco, triste, com forte tendência para o sofrimento, vivendo em uma sociedade dividida entre a decadência europeia humanista e a crescente evolução tecnológica norte americana. Vive essa duplicidade com incapacidade de se encontrar ou se posicionar escolhendo uma ou outra. Em um encontro casual com Hermínia,  nome feminino de Hermann, ela lhe apresenta um mundo novo, onde, repassando ou se confrontando com seus ídolos, Harry terá que aprender a rir de si mesmo. Encontrar em si a ironia superior perante a vida.

A arte e a realidade expostas por seus ídolos Mozart e Goethe, o levarão ao encontro da harmonia entre o homem e o lobo existentes em si mesmo. Uma visão bem humorada de si e do mundo que o cerca, com suas relatividades, dúvidas e diferentes facetas. A reação a essa obra de Hermann Hesse teve uma receptividade controversa. Para alguns, considerada uma obra inútil. Para outros, um marco do preexistencialismo. Os movimentos hippies, principalmente, viram em seu caráter alucinatório, um modelo de obra que acolhia o movimento.
Em sua essência, “O lobo da estepe” é uma obra que aborda a vida urbana como algo que desintegra a cultura e os aspectos psicológicos do ser, retratando uma cultura, aos olhos do artista, desprovida de senso de humor e leveza. Solidão, aspereza e falta de cuidado no trato com as pessoas, tornam-se alternativas comuns para suportarmos o fardo imposto, por nós mesmos, na condução de nossas vidas.

Fruto de sua maturidade como um escritor que questionou conceitos, condutas políticas, visitou e conheceu culturas diferentes, surge em 1943, “O jogo das contas de vidro”.
Embora seu argumento seja simples, a obra possui grande complexidade, ao abordar um sistema de regras para a condução da vida, idealizada a partir da criação de uma ordem em que se prevaleça o cultivo do espírito e o empenho na construção de um novo mundo, frente ao cansaço causado pela decadência cultural. Conhecida como a Ordem de Castália, nome que deriva da província pedagógica de Castália, ideada por Goethe, ali vivem seus membros em condição quase monástica, sem aceitar os frutos e êxitos mundanos. Todos tendo como objetivo a busca de união de todas as artes e ciências. Como diz o próprio autor: “O jogo das contas de vidro é um jogo baseado em todos os conteúdos e valores da cultura com os quais se joga da mesma maneira como um pintor jogava, em épocas de florescimento, com as cores da sua paleta”. Para se chegar ao domínio de todas as regras, eram necessários anos de dedicação e rigor na  formatação de costumes, além do desenvolvimento de uma conduta e disciplina voltada para a busca da intelectualidade em convívio com a simplicidade nos hábitos.

Seu protagonista Joseph Knecht, em português José Servo, ingressa na ordem de Castália e se sobressai, ao longo dos anos, chegando ao posto máximo de “Magister Ludi”. Com o tempo, na medida em que avança em seus conhecimentos, Joseph Knecht começa uma série de questionamentos acerca da proposta de Castália, de criar um novo mundo. Percebe que esse mundo também está sujeito às mudanças, intempéries e problemas concernentes à natureza humana, como o viver, o morrer e, até mesmo, a solidão das ideias. De seu alto posto, vislumbra outros valores e abandona Castália, partindo em busca de outras experiências. Afastado do mundo fora de Castália e desacostumado do embate do dia a dia pela sobrevivência, ele consegue um cargo de professor para o filho de um amigo, agora político. Pouco tempo após, morre afogado em uma lagoa nas montanhas. Em Hermann Hesse é frequente a morte de seus personagens na água, representando um mergulho no inconsciente. Thomas Mann, com quem Hesse se correspondeu durante muitos anos, diz em uma carta, a respeito de “O jogo das contas de vidro”: “A perplexidade figura também entre os sentimentos com que li a obra; perplexidade ante uma sensação de proximidade e parentesco que, apesar de não ser a primeira vez que me impressiona, o fez agora de forma especialmente precisa e objetiva”. Nessa frase ele faz alusão ao romance que escrevia naquela ocasião, intitulado “Doutor Faustus”, que tratava da vida de um compositor alemão vivendo a solidão da busca de novas linguagens na criação.

Hermann Hesse recebeu, em 1946, o Prêmio Nobel de Literatura. Morreu em sua casa em Montagnola, na Suiça, em 1962, aos 85 anos. Segundo sua esposa Ninon Dolbin, caminhando pelo bosque na manhã anterior, Hesse teria dito, ao puxar um ramo podre de uma acácia: “Este ainda aguenta”. Daí surgiu o poema: “Duma vida demasiado longa, Duma morte demasiado longa, cansada, Ainda um Verão, ainda um inverno”. Morreu na manhã seguinte, enquanto dormia.
Em Hesse convivem a arte e a fantasia com a lógica e o rigor intelectual. Apolo e Dionísio lado a lado, se confundindo no mover da vida. A instabilidade do ser, suas incertezas e a transformação das dores e dúvidas em realizações e transcendência do espírito. O sagrado e o profano.

São várias as leituras possíveis nas obras citadas. Em todas elas, a solidão do ser se confronta com a vida cotidiana, na busca de solução para os problemas que atormentam seus personagens. Embora nos dois primeiros romances, o autor coloque seus personagens em enfrentamento com a dura realidade, percebe-se em ambos, o apaziguamento das incertezas e medos, por meio da criatividade na arte. Em contraponto com essa solução para as amarguras do ser, no romance “O lobo da estepe”, a única saída possível para a vida, aconselhada por Mozart e Goethe é brincar com todos os problemas e medos, sem buscar uma superação racional. Aceitá-los com bom humor sem se levar muito a sério, convertendo-os em experiência vital que ilumine o ser e dê brilho à vida. Já no livro “O jogo das contas de vidro”, o personagem José Servo encontra a si mesmo, a partir do abandono de teses conceituais sobre a vida, de sua substituição pelo viver as coisas simples tendo como suporte o tempo. A vida regida pelo tempo que nos resta para viver; que consome o pensamento humano e nos prepara para o mergulho final no lago da entrega e da impotência frente à certeza da morte.

Na procura do entendimento da vida e de sua posição no mundo, com suas variantes e riqueza de possibilidades, dissera o autor anos antes: “Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal, após tantos anos”.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Cinema

Voar tornou-se símbolo de liberdade. Da busca do desprendimento das amarras da vida. Mas é na solidão de uma cela, morada de um condenado à prisão perpétua, que um filhote de pardal encontrará o cuidado necessário para crescer longe de seu ninho, longe de sua espécie, dando início a um período de paz interior, justamente quando o detento se envolve e se preocupa com o dia a dia dessa ave solitária. Isso dá sequência a uma história fantástica sobre o cuidado e a leveza, necessários para lidar com pássaros tão frágeis e delicados.  Sentimentos que contagiam o coração. Ali, onde o termo “liberdade” não produz os efeitos práticos, resta somente a libertação da alma. A aceitação das limitações da vida vivida em cativeiro. Justamente com pássaros. Estou falando do filme “Birdman of Alcatraz”.*

Não sabemos o que nos espera após a morte... Moldamos, ao longo da vida, o que pensamos ser o melhor e, baseados nos preceitos familiares e na convivência social, fazemos opções assumindo as consequências possibilitadas pelo exercício do livre arbítrio.
Imaginem se após a morte, fôssemos recebidos por um grupo incumbido de criar o filme de um momento de nossa vida, que nos tenha marcado profundamente! Essa lembrança seria o que levaríamos para a eternidade. Somente uma lembrança... Nesse momento, qual seria a lembrança de um acontecimento importante em sua trajetória nesse mundo, que seria o filme de sua vida para a eternidade? Estou falando do filme “Depois da vida”.**

Andando por uma rua deserta, à noite, observava a solidão dos edifícios, com suas poucas luzes acesas, imaginando os acontecimentos  simultâneos que contribuem para o que chamamos de viver. Alegrias, tristezas, realizações, dores... Tudo acontecendo simultaneamente e girando a roda que movimenta o mundo. Repentinamente, gritos atravessam a noite interrompendo a monotonia e o romantismo de uma chuvinha fina. Duas pessoas discutem com ferocidade. Embaixo de uma marquise, uma velha senhora de aproximadamente trinta e poucos anos, vociferando com palavrões e muita ira, exige que um rapaz saia de seu espaço argumentando que, à noite, aquele lugar é a sua casa. Ela exige que respeitem o seu lar de todas as noites. A briga é muito assustadora e a senhora sai vencedora. O invasor desiste. Sai em busca de outro lugar.

Estou falando, lamentavelmente, do filme real da vida. O espectador era eu mesmo. Descia a Rua Gávea no bairro Jardim América, em Belo Horizonte, após um dia de gravações. Quisera ser, naquela hora, o herói de um filme que salva os pássaros de dentro de sua morada eterna nesse mundo. Teria uma bela lembrança para o filme de minha vida...

*John Frankenheimer
**Hirokazu Kore-eda



sábado, 11 de março de 2017

Todas as manhãs do mundo

Música... Teremos que fechar os ouvidos para tudo que nos propõem. Teremos que abrir nosso coração para tudo que desconhecemos. Quem sabe nos encontremos na entrega, no voo maior da busca? Por que ser músico? Por que compor ou estudar um instrumento? Quando podemos considerar o que fazemos, como música verdadeira?
Muitos artistas já se perguntaram ou se depararam com esse questionamento, que definiria sua permanência, ou não, nesse difícil caminho.

Baseado no livro de Pascal Quignard - Tous les matines du monde -  “Todas as manhãs do mundo” (1991), de Alain Corneau, é um filme com um roteiro sutil, com uma aura bucólica e um romantismo comedido na aparência, embora intenso na essência. Caracterizando um conceito e estilo de amor trágico que, mesmo com a utilização de elipses, não transparece nenhuma preocupação com as entrelinhas. Permitindo que os personagens vivenciem a lentidão e a solidão do tempo interior.

Sainte-Colombe, um grande músico afastado da corte, vive com suas duas filhas em uma propriedade rural. Ambas aprenderam, com o pai, os conceitos estéticos da música e a arte de tocar  a Viola da gamba*. Vivendo de forma austera, passando várias horas em uma cabana construída para ser seu reduto, com o objetivo de se dedicar à música e à memória de sua esposa, ele se torna uma pessoa amarga, silenciosa e solitária. Fechado em si mesmo com seus fantasmas, levando ao extremo a sua condição solitária.

Marin Marais é um jovem  e talentoso estudante de música que busca em Monsieur Sainte-Colombe, os ensinamentos para se aprofundar no estudo da Viola da Gamba.
Hesitante, o mestre o aceita como aluno mas, pouco tempo depois, o expulsa de sua propriedade. Insensível aos soluços de sua filha, o mestre lhe diz: “O que é um instrumento? Não é a música ...Ouça os soluços que a pena arranca de minha filha... Estão mais perto da música que suas escalas! Vá-se daqui pra sempre. Você é um bom malabarista. Os pratos voam sobre sua cabeça e você não perde o equilíbrio. Mas é um pobre músico.”

Embora já estivesse envolvido com Madeleine,  uma das filhas de St. Colombe, Marais passa a viver na corte, rejeitando-a mesmo após saber de sua gravidez, construindo uma carreira de muito sucesso e se tornando um  importante compositor de sua época. A criança nasce morta, colocando Madeleine em grave estado de saúde. Fragilizada pelo abandono, manifestando seu desejo de ouvir a peça que Marin Marais havia composto para ela, por meio de sua irmã, o compositor lhe faz uma última visita. Após a execução de “La Rêveuse” e a partida de Marais, ela se suicida.

Como a música se alimenta da busca do conhecimento e aprofundamento no ser, mesmo com todo o sucesso na corte, Marais, aos poucos, sente que aquela semente lançada com hostilidade por seu mestre, criara raízes em seu pensamento e se tornara fértil em seus anseios de músico. Todas as noites ele retorna à propriedade de Sainte-Colombe e, escondido, escuta sua música. Talvez tocado pela culpa – Madeleine havia se suicidado depois de abandonada por ele – percebemos em sua atitude uma similaridade da percepção do sofrimento e da perda com o desejo de busca de novos caminhos para a música que professava. Tendo como essência a incompletude, o desejo de conhecimento do indizível...

A partir desse ponto, inicia-se uma nova relação entre mestre e discípulo, em um diálogo revelador, que aprofunda os conceitos filosóficos que doutrinam a vida do músico. O que é a música?  O que nos leva a ser músico e estudar um instrumento? Experiências de vida que dialogam com a subjetividade do ser e do fazer música. Aquilo que não existe, que nos vem em leves pinceladas do tempo em nossa forma de conduzir e ordenar os sons, o silêncio...

O filme, tecnicamente muito bem produzindo, conta com uma linda fotografia de Yves Angelo e belíssimas interpretações de Guillaume Depardieu (morto prematuramente aos 37 anos por pneumonia) como o jovem Marin Marais e Anne Brochet, como Madeleine. Como narrador VoiceOver e no papel de Marin Marais em sua fase adulta, encontramos um brilhante Gerard Depardieu que contracena magistralmente com  Jean-Pierre Marielle, como Sainte Colombe, um destaque à parte. Dois grandes atores conduzindo toda a trama, envolvidos pela beleza musical de temas compostos por Marin Marais e St. Colombe, entre outros, além de música original composta e interpretada impecavelmente por Jordi Savall, o que eleva e intensifica o realismo emocional da ação.

Para os músicos, talvez seja um pouco sofrível a imitação dos movimentos na interpretação dos temas, pela falta de sincronia e lógica dos movimentos melódicos, detalhe que merecia um estudo mais aprofundado. Mas, em hipótese alguma, esse deslize compromete um dos grandes filmes sobre música. Que nos eleva e nos enleva. Que nos conduz à reflexão máxima da vida, como dito em determinado momento do desenvolvimento da ação: "Todas as manhãs do mundo não retornam".

*Viola da gamba – instrumento de cordas tocado com arco e geralmente dotado de sete (viola francesa) ou seis cordas (viola inglesa).

Gênero: Drama
Direção: Alain Corneau
Roteiro: Alain Corneau, Pascal Quignard
Elenco: Anne Brochet, Carole Richert, Caroline Sihol, Gérard Depardieu, Guillaume Depardieu, Jean-Claude Dreyfus, Jean-Marie Poirier, Jean-Pierre Marielle, Michel Bouquet, Myriam Boyer, Nadège Teron, Philippe Duclos, Violaine Lacroix, Yves Gasc, Yves Gourvil, Yves Lambrecht
Produção: Jean-Louis Livi
Fotografia: Yves Angelo
https://youtu.be/pzJrIuSiQiQ

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

A árvore dos tamancos

Crianças desempenhando funções de adultos e integradas, com suas famílias, à dura realidade do dia a dia. Vivendo e aceitando a dureza da vida pobre, com resignação e simplicidade. Inovando e renovando, todos os dias, a alegria e o poder criativo nas relações, no lazer e nas brincadeiras. Exercitando o amor em breves flertes respeitosos, com a beleza e pureza dos seres e da natureza. Mas sujeitos às injustiças sociais...

“A Árvore dos Tamancos” é considerado um dos grandes trabalhos do diretor Ermanno Olmi (Bérgamo – Itália - 1931). Seguindo os moldes do Neo Realismo Italiano, trabalhando com camponeses reais sem nenhuma experiência como atores, o diretor nos mostra a dura realidade de um agrupamento de famílias que vivem na região da Lombardía, no final do século XIX. Vivendo sob um regime de meeiros, onde a partilha de tudo que se colhe é feita em uma proporção de dois para um, cabendo aos trabalhadores a menor parte.

Individualmente, os personagens têm objetivos diversos na vida. O que os une é a luta pela subsistência, onde todos buscam uma saída para os seus problemas, dividindo os trabalhos, as angústias e se apegando à religiosidade e crença em Deus, como única saída para os seus infortúnios. Talvez um contrapeso para as limitações sociais impostas pelo sistema, buscando uma compensação divina para as desgraças e dissabores que os assolam na vida diária.

O tema central trata da história de um casal que, aconselhado pelo pároco, envia seu filho, criança notadamente inteligente, à escola. Isso o obriga a caminhar alguns quilômetros diários para estudar. Em uma dessas idas e vindas, o menino vê o seu calçado partido e, com muita dificuldade e lentidão consegue retornar à sua casa. Diante do acontecimento e da falta de recursos para comprar outro calçado, seu pai resolve cortar, às escondidas, uma árvore para, à noite, durante as orações da família, confeccionar um novo sapato para seu filho. As consequências dessa atitude, no desfecho do filme, nos conduzem à triste percepção de um mundo cruel, movido pelo poder e alheio às necessidades humanas.

Mesmo seguindo uma linha documental, o diretor conduz toda a trama com lirismo, esmero e abordagem poética. Sem evitar a crueza dos costumes e da condição dos camponeses pobres, ele nos leva à percepção da solidariedade humana em meio à pobreza. Da criatividade nas relações pessoais e do lazer em acordo com as condições sociais, onde todos cultivam, juntos, o bom humor e preservam o respeito e a amizade.

No final, a triste constatação de que nos tempos atuais vivemos em um mundo mais evoluído, porém com a persistência dos mesmo problemas: a dificuldade do acesso ao conhecimento e o domínio capitalista massificando e induzindo a maioria da população, com interesses alheios às necessidades do povo. Que em pleno século XXI ainda se permite a fome, a pobreza e a falta de educação básica. Que se promove a violência e se permite que os mecanismos tecnológicos, que poderiam tornar a vida de todos os seres melhor, pouco a pouco se convertem em grandes e comprometedores problemas que favorecerão, em curto prazo, o desemprego em nível mundial.
Premiado em vários países, “A árvore dos tamancos” obteve a Palma de ouro (melhor filme), no Festival de Cannes 1978, além do Prêmio Especial do Júri Ecumênico.

A ÁRVORE DOS TAMANCOS
(L´Albero Degli Zoccoli, Itália / França, 1978).
Direção, Roteiro e Fotografia: Ermanno Olmi.
Elenco: Luigi Ornaghi, Francesca Moriggi, Omar, Brignoli, Antonio Ferrari, Teresa Bresciani, Giuseppe Brignoli.
Drama / História.
186 minutos.
https://youtu.be/juvT6B_c0VA